sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Camões Lírico


Camões produziu poemas nas duas vertentes que vigoravam no seu tempo, a medieval, expressa na “medida velha” (redondilhas), e a clássica, expressa pela “medida nova” renascentista (sonetos, odes, elegias, canções etc), subdividida em lírica e épica (“Os Lusíadas”). Em ambas as vertentes, Camões foi o maior poeta do seu tempo.

Medida velha: escritas na mocidade do poeta, as suas redondilhas são, em geral, leves, brincalhonas, destinando-se à recitação na corte. Mas, ao género popular e folclórico da poesia medieval, Camões
oferece dimensões mais vastas, fruto da sua grande experiência pessoal e de seu genial talento. O uso das antíteses e dos paradoxos ultrapassa as limitações formais das redondilhas, dando-lhes uma problemática nova, recheada de ambiguidades, trocadilhos, imagens e de magia verbal. 

Exemplo:

“PERDIGÃO PERDEU A PENA”
Mote alheio

Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.

Voltas

Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha...

Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado,
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre...
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha!

Neste vilancete, podemos observar a reflexão intelectualizada acrescentada à aparente simplicidade da forma emprestada da poesia popular medieval. A palavra é empregada como jogo por meio da ambiguidade dos sentidos. A palavra “pena”, por exemplo, é explorada em suas múltiplas acepções (pluma, instrumento de escrita, castigo, punição, piedade, compaixão, dó), despertando o leitor para a riqueza e expressividade da língua. O mote do Perdigão incorpora um tema popular do folclore português, o de que não há mal que venha só. Por meio do trocadilho com o vocábulo “pena”, o eu-lírico parece exprimir um drama íntimo que ganha alcance de drama universal.

Medida nova:

Camões encontra sua plena realização na poesia de inspiração clássica, chegando até mesmo a superá-la em mais de um aspecto, sendo, por isso, considerado um precursor do Barroco.
Sua poesia, nas palavras do crítico Massaud Moisés (A literatura portuguesa, 2008), “espelha a confissão duma tormentosa vida interior, repassada de paradoxos e incertezas, a reflexão em torno dos magnos problemas que lhe assolavam o espírito, não só provocado pelas suas vivências pessoais, mas também pela tomada de consciência dum desconcerto universal em que todos os seres humanos estivessem imersos”. Poeta de preocupações filosóficas, Camões mergulhou no angustioso mundo do “eu”, do amor, da vida, do mundo.

• O soneto

De origem controversa, o soneto atingiu vasto alcance e reconhecimento na Europa com Petrarca, que a ele fixou forma e conteúdo modelares. Composto por 14 versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos, o soneto pode ser, quanto à métrica e à rima, constituído de variadas formas. Mas, tal como foi fixado por Petrarca, era composto de versos decassílabos e suas rimas dispostas segundo o modelo: ABBA – ABBA nos quartetos e CDC – DCD nos tercetos, sendo ainda comum o sistema CDE – CDE nos tercetos.
Os sonetos do Classicismo português seguiram os moldes do soneto petrarquiano, alcançando com Camões sua máxima expressão e triunfo. O que mais se conhece da poesia de Camões são os sonetos, dentre os quais encontramos os melhores de toda a literatura portuguesa. A relação de Camões com Petrarca pode ser evidenciada na clara intertextualidade que o poeta português faz com um poema do poeta italiano, dos quais exibimos abaixo a primeira estrofe:

Poema de Petrarca

A alma minha gentil que agora parte
Tão cedo deste mundo à outra vida
Terá certo no céu grata acolhida
Indo habitar sua mais beata parte.

Poema de Camões

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

• O Amor

Em Camões, a concepção de amor é influenciada pelo neoplatonismo (ideias de Platão cristianizadas por Santo Agostinho). Sendo assim, o Amor (com maiúscula), em Camões, é visto como um ideal superior, único, como Bem supremo. O homem, porém, como ser carnal e imperfeito, retirado do mundo das ideias, no qual está a Verdade eterna e absoluta, jamais consegue alcançar esse Amor. Desse modo, o amor físico vivido pelo homem deve ser representado graficamente com letra minúscula, pois, na concepção neoplatônica, ele seria apenas cópia degradada do Amor ideal.
Essa tensão entre ser e não ser, entre querer e não poder, é gerativa, na poesia de Camões, de toda a angústia, dor e insatisfação da alma humana. É por isso que as imagens poéticas instauradas pelo poeta para falar do amor costumam se alicerçarem em paradoxos e antíteses.
O retrato da mulher em Camões está subordinado a um ideal de beleza perene e universal. Apesar de ser ela também um ser imperfeito, nos poemas do escritor ela é espiritualizada, pois ele vê na figura da mulher a possibilidade de um reflexo do Amor absoluto a que tanto busca.
Em meio a essas reflexões, é possível notar que o amor é tratado pelo poeta como objeto de extensa reflexão, sendo submetido menos pelo sentir do que pelo pensar. Uma postura típica da época em que está inserido, período em que predomina a Razão e o conhecimento advindo do próprio homem. Como exemplo dessa poesia, um dos mais belos e conhecidos poemas do escritor, no qual há uma tentativa angustiosa de conceituar o amor:

Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

• O desconcerto do mundo

Ainda sob influência do neoplatonismo, Camões contrapõe a perfeição do Mundo das Ideias à degradação e imperfeição do mundo terreno, que não corresponde aos anseios dos Valores ideais. Ao abordar essa temática, que também abrange os temas da “fugacidade do tempo” e do “inevitável envelhecimento do homem em contraposição à constante renovação da natureza”, Camões ultrapassa os modelos renascentistas de equilíbrio e linearidade, bem com o dogmatismo religioso português, aproximando-se do que mais tarde viria a ser a estética barroca.
No poema abaixo, o poeta fala da mutabilidade do tempo e do homem:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz, de mor espanto,
que não se muda já como soía.

Já nesta redondilha, o eu-lírico critica, de forma levemente humorística, a justiça humana que, segundo ele, premeia os maus e pune os bons:

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado,
Assim que só para mim
anda o mundo concertado...

Na lírica camoniana coexiste a poética tradicional e o estilo renascentista.

Características da corrente tradicional

-As formas poéticas tradicionais: cantigas, vilancetes, esparsas, endechas, trovas...
-Uso da medida velha: redondilha menor e maior.
-Temas tradicionais e populares; a menina que vai à fonte; o verde dos campos e dos olhos; o amor
-Temas tradicionais e populares; a menina que vai à fonte; o verde dos campos e dos olhos; o amor simples e natural; a saudade e o sofrimento; a dor e a mágoa; o ambiente cortesão com as suas “cousas de folgar” e as futilidades; a exaltação da beleza de uma mulher de condição servil, de olhos pretos e tez morena (a “Barbara, escrava”); a infelicidade presente e a felicidade passada.

Características da corrente renascentista

-O estilo novo: soneto, canção, écloga, ode, entre outros.
-Medida nova: decassílabos.
-O amor surge, à maneira petrarquista, como fonte de contradições, entre a vida e a morte, a água e o fogo, a esperança e o desengano;
-A concepção da mulher, outro tema essencial da lírica camoniana, em íntima ligação com a temática amorosa e com o tratamento dado à Natureza (“locus amenus”), oscila igualmente entre o pólo platónico (ideal de beleza física, espelho da beleza interior), representado pelo modelo de Laura e o modelo renascentista de Vénus.

Os poemas de Camões apresentam diversos temas (tensões) que foram abordados pelo autor para demonstrar seus sentimentos e questionamentos, sendo eles: o amor e a mulher, o autobiografismo, o sentimento religioso, os desconcertos do mundo.

O AMOR E A MULHER
“Pede-me o desejo, Dama, que vos veja”

Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja
que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da natureza,

assim o pensamento (pela arte
que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Encontramos neste soneto um pensamento sobre o amor, inicialmente falandose sobre o desejo e de como quem ama não sabe ao certo o que deseja. O sentimento tão físico de desejar se transforma em platónico e não sendo concretizado é condição para que o amor seja eterno. Existe, então, o conflito entre o espiritual e o carnal quando o eu-lírico expõe a sua condição terrena e humana.
O amor e a referência à mulher são levados para o sentimento platónico, como se pode observar na primeira estrofe “É este amor tão fino e tão delgado”, porém também existe a contrariedade da condição humana em “que vai tomar de mim, terrestre [e] humana”, características que dão força dramática ao poema. Durante todo o tempo existe o conhecimento do que seja eterno e também a contrariedade do desejo físico, num questionamento que exprime também a força intelectual do
poema.

O AUTOBIOGRAFISMO
“Erros meus, má fortuna, amor ardente”

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa a que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Observa-se claramente neste soneto a vida do poeta, onde autor e eu-lírico se fundem, sendo enfatizados seus erros, causa de castigo da deusa Fortuna: “Errei todo o discurso de meus anos; dei causa a que a Fortuna castigasse”. O sentimento de arrependimento se faz presente numa confissão e também, a compreensão de que somente o amor, na sua essência, era o suficiente.
Encontramos a força do lirismo último, quando o autor apresenta um questionamento sobre suas ambições, que de uma forma geral, são as ambições humanas. Esta acaba por englobar a força intelectual com suas questões existenciais (que exigem conhecimento) e a força dramática com seus contrates (no caso, o certo e o errado).
Olhando por uma outra óptica, podemos também incluir este poema na tensão “os desconcertos do mundo”, que será vista com mais detalhe posteriormente, e que nos apresenta o desengano com a existência. O autor demonstra uma desesperança diante da vida quando diz “a não querer já nunca ser contente”, com um toque de dramaticidade causada, como vimos, pelo conflito entre o que é certo e errado.

O SENTIMENTO RELIGIOSO
“Verdade, Amor, Razão e Merecimento”

Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

O autor coloca no seu soneto os valores, como personagens, que garantem a elevação da alma, “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, em oposição aos valores que regem o mundo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte”. A sua intenção é mostrar a essência do contraste entre a visão religiosa que proporciona a vida eterna e a visão materialista que busca os prazeres do mundo, e que mais que o homem pense, não consegue entender. Para tanto, seguindo a sua crença, indica que tudo deve ser visto com os olhos da fé em Cristo, como explicitado no verso “mas o melhor de tudo é crer em Cristo”.
Essa crença em Cristo é apresentada como o caminho para se encontrar a solução da questão do confronto entre o bem e o mal, o certo e o errado, reflexo de uma angústia que mostra a força dramática do poema. As oposições e os contrastes que Camões utiliza, mostram também uma característica que aparece em muitos de seus poemas, o maneirismo, que se utiliza de antíteses e paradoxos para demonstrar o drama interior do poeta, uma das características dos artistas do Renascimento.

OS DESCONCERTOS DO MUNDO

“Ao desconcerto do Mundo”
Os bons vi sempre passar
no Mundo grandes tormentos;
e pera mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só pera mim,
anda o Mundo concertado.

O autor considera na primeira parte do seu poema que todos que são bons passam por “grandes tormentos” e que a vida de quem é mau, um “mar de contentamentos”. Em seguida, revela que para garantir essa vida feliz resolveu ser mau, porém foi castigado, e conclui que só para ele vale a regra de que só alcança o bem quem é bom: “assim que, só para mim, anda o Mundo concertado”; para o
poeta, um desconcerto do mundo é premiar quem é mau e castigar quem é bom.
Neste poema encontramos a força musical nas suas rimas, no jogo entre as palavras bom, bem, mal, mau e também no uso da medida velha com o emprego da redondilha maior (versos de sete sílabas poéticas: Os/bons/vi/sem/pre/pas/sar), que garantem a musicalidade e a graça, características da lírica medieval mas que o poeta renova com o relato das experiências da sua vida e cujo resultado é a beleza de cenas do quotidiano humano.

Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos
Fazeis que sua graça se acrescente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece,
Se na alma em doces ecos não o ouvisse!

Se imaginando só tanta beleza,
De si, em nova glória, a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah! quem a visse!

Neste soneto, o sujeito imagina e exalta a beleza da amada ausente, cujo retrato reconstitui pela memória (influência platónica da teoria da reminiscência), e, no último terceto, exprime grande desejo de a ver, através da interrogação retórica, da interjeição (“Ah!”) e da exclamação. Revela, sobretudo, influência petrarquista na idealização da mulher e na exaltação das suas qualidades físicas (os cabelos, os olhos, o rosto, os dentes, os lábios) e, também, das suas qualidades psicológicas ou morais (a doçura, a graça, a honestidade).

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